Sob o disfarce de algumas variantes, o mito do herói é uma constante na história não só do Ocidente, mas da humanidade. Em geral, ele tem um sentido simbólico e segue uma jornada padrão, a qual Joseph Campbell descreve na sua obra clássica “O Herói de Mil Faces”. Esta mesma jornada aparece em diversas histórias que conhecemos, sendo uma delas o mito da caverna de Platão, que vamos analisar de modo sucinto para tentar demonstrar seu significado simbólico.
Como Campbell esclarece, devemos atentar para o sentido legítimo da luta do herói, sempre presente na mitologia, nos sonhos, na religião e nos contos de fada de todas as culturas e de todos os tempos, sendo de caráter religioso ou não. E esta luta não diz respeito à realidade física, e sim à realidade psicológica. Os perigos enfrentados, os monstros, as batalhas e tudo mais ocorrem num âmbito interno, pois sua jornada se desenrola dentro da própria psique do Homem. É nela que residem as nossas reais dificuldades e onde devem ser “combatidos os nossos demônios”. Ao vencer a batalha, passando pelo caminho pedagógico da virtude, ocorre a transformação interna do sujeito e a Verdade Suprema é alcançada (ou, como dizia Platão, “lembrada”, pois ela já se encontra dentro de nós, só precisamos buscá-la), na qual o desejo e, conseguintemente a dor, não mais existe e sim o governo de si próprio. Somente o detentor desta Verdade Suprema é capaz de manter-se inalterado diante das vicissitudes do destino e dos sentidos, de distinguir as ilusões do mundo do verdadeiro Caminho. O herói, portanto, “simboliza aquela divina imagem redentora e criadora, que se encontra dentro de nós e apenas espera ser conhecida e transformada em vida”¹.
O percurso do herói, como já foi dito, segue um modelo padrão, a saber: separação – iniciação – retorno. A separação ocorre quando o sujeito deixa o reino externo e volta-se para o reino interno, ou seja, abandona a vida mundana e adentra no mundo da psique. Em outras palavras, ele migra do material e transitório para o que é eterno no mundo, do falso para o verdadeiro. A iniciação é quando a Verdade é-lhe revelada. O retorno é o momento em que o herói regressa ao convívio social para trazer aquela Verdade como mensagem. Para ilustrar essa jornada, podemos lembrar-nos da história de Moisés, em que ele sobe ao topo do Monte Sinai (separação), fala com Deus e recebe os mandamentos (iniciação), e depois volta para o seu povo e transmite os ensinamentos divinos (retorno). Além de Moisés, podemos citar Buda, Prometeu, Cristo, Arjuna e muito outros.
Antes de buscar as relações entre o mito da caverna e o padrão da jornada do herói estabelecido por Campbell (separação – iniciação – retorno), é necessário que recordemos rapidamente o que se passa na caverna de Platão. Nela, habitavam homens que, desde a infância, viviam acorrentados pelos pés, mãos e pescoço. Estavam sempre de costas para a saída, de modo que nunca podiam olhar para lá, mas sempre para a parede no fundo da gruta. O caminho até a saída era íngreme e nela havia uma fogueira cuja luz projetava, por cima da cabeça dos prisioneiros, sombras manipuladas por um operador. Também havia pessoas passando com objetos diversos, às vezes falando e às vezes não, mas que projetavam sua imagem e faziam-se escutar por aqueles que estavam acorrentados. Estes nunca tinham visto nada além dessas sombras e, naturalmente, acreditavam que eram reais (inclusive achando que eram elas a falar o tempo todo). Daí, supõe-se que um dos homens seria libertado e sairia da caverna. Este homem, no princípio, ainda acostumado às sombras, não conseguiria enxergar bem a luz e não acreditaria que aquilo que estava vendo era real. No entanto, aos poucos, se adaptaria à luz e seria capaz de olhar diretamente para o Sol, percebendo que este é o responsável pelas estações do ano, pela abundância dos alimentos, pela sucessão dos dias, das semanas e dos anos, ou seja, pela vida. Então, também entenderia que as sombras às quais estava habituado não eram reais e sim projeções dos objetos verdadeiros. Ao voltar para a caverna, por ter os olhos ofuscados pela luz, não conseguiria ver nada nas sombras e passaria por ridículo, diriam que ele havia estragado os olhos ao sair da caverna. No entanto, o filósofo teria este dever de descer até os prisioneiros para contar sobre a Verdade.
O esclarecimento sobre este mito é dado pelo próprio Platão em “A República”. A caverna: simboliza o mundo visível, das ilusões. O caminho para a saída: ascensão da alma ao mundo superior, inteligível, a passagem do mundo exterior ao interior. O Sol: a idéia do Bem. A luz: a Verdade. Partindo dessas explicações, não fica difícil reconhecer a jornada do herói na alegoria platônica. O filósofo que sai da caverna, subindo até a saída e afastando-se dos outros prisioneiros, passa pela primeira etapa da jornada, a separação, ou seja, é o caminho da “transformação e purificação da alma para poder contemplar o Ser Supremo”² (o Sol). Ao contemplá-lo, assim como tudo que é iluminado por sua luz (a Verdade), ele passa pela segunda etapa, a iniciação, onde distingue o que é real e o que não é. Já a descida de volta à caverna corresponde a terceira e última etapa, o retorno. Para Platão, “a verdadeira educação consiste em despertar os dotes que dormitam na alma”, fazê-la voltar-se para a idéia do Bem (a origem de tudo), para o “caminho de formação espiritual pelo qual se possa progredir para um ser mais alto e, portanto, para uma mais alta perfeição (…) esse caminho é, segundo as palavras de Platão em ‘Teeteto’, o ‘da semelhança com Deus’”³.
Poderíamos então dizer que o herói platônico é, conseqüentemente, o filósofo, que busca dentro de si a virtude e a idéia do Bem, que consegue distinguir o que é ilusório no nosso mundo e viver de acordo com a Verdade Suprema. Ele reconhece a unidade dentro da multiplicidade e torna-a conhecida. Mas o caminho percorrido representa exatamente a saga do homem, de se aproximar do divino, de, através da virtude e do domínio de si próprio, tentar desvendar o mistério do mundo. Como Campbell descreve, o filósofo/herói é o “filho de Deus que aprendeu a saber o que esse título significa”.
¹ CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. 1ª ed. São Paulo: Cutrix/Pensamento, 2007, p. 43.
² JAERGER, Werner. Paidéia: Formação do Homem Grego. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 887.
³ Ob. sit., p. 889, 890.
Referências:
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. 1ª ed. São Paulo: Cutrix/Pensamento, 2007.
JAERGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PLATÃO. A República. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário